Em 2025, a França acompanha um dos maiores julgamentos de crimes sexuais de sua história, com o ex-cirurgião Joël Le Scouarnec, de 74 anos, acusado de abusar sexualmente de mais de 250 menores. O processo, iniciado em 24 de fevereiro em Vannes, na Bretanha, envolve 299 vítimas, a maioria crianças que eram suas pacientes entre 1989 e 2014. Le Scouarnec, já condenado em 2020 a 15 anos por outros casos, enfrenta agora charges de estupro e agressão sexual agravados. O caso chocou o país pela escala e pela duração dos crimes. Ele admitiu no primeiro dia do julgamento ter cometido “atos odiosos”. A Justiça tenta esclarecer décadas de silêncio institucional.
Os abusos teriam ocorrido em hospitais da Bretanha e do oeste da França, onde Le Scouarnec atuava como especialista em cirurgias digestivas. Muitas vítimas estavam sob anestesia ou em recuperação pós-operatória, o que as impedia de lembrar ou denunciar os atos na época. A investigação ganhou força em 2017, após uma vizinha de 6 anos acusá-lo de abuso, levando à descoberta de seus diários digitais. Esses registros detalhavam os crimes com precisão, listando nomes, idades e descrições dos atos. A média de idade das vítimas era 11 anos. O material foi essencial para identificar os casos.
A promotoria aponta que Le Scouarnec agia com “estratégias de dissimulação”, aproveitando sua posição de autoridade como médico para cometer os abusos. Ele isolava as crianças em quartos de hospital ou durante exames, disfarçando os atos como procedimentos médicos. Muitos dos afetados só souberam dos crimes anos depois, quando a polícia os contatou com base nos diários. O impacto psicológico nas vítimas, hoje adultas, é descrito como devastador. O julgamento deve durar quatro meses. É um marco na luta contra a pedofilia.
O caso expõe falhas graves no sistema francês, que permitiram que Le Scouarnec continuasse atuando mesmo após alertas. Em 2004, o FBI informou às autoridades francesas que ele acessava sites de pornografia infantil, resultando em uma condenação em 2005 a quatro meses de prisão suspensa. Apesar disso, ele não foi afastado da medicina e seguiu operando crianças. Colegas e hospitais onde trabalhou ignoraram sinais, como denúncias internas em 2006. A omissão institucional está sob escrutínio neste julgamento. A pergunta “quem sabia?” ecoa entre vítimas e ativistas.
Amélie Lévêque, uma das vítimas, tinha 9 anos em 1991 quando foi operada por Le Scouarnec. Ela só descobriu o abuso em 2019, ao ver seu nome nos diários do cirurgião, o que desencadeou depressão e uma busca por respostas. “Foi o início de uma descida ao inferno”, disse ela à France 3. Seu depoimento reflete o trauma de muitos que, sem memória dos atos, carregaram sequelas inexplicáveis por décadas. O julgamento traz à tona histórias de dor reprimida. É também um momento de validação para os sobreviventes.
Ativistas e grupos de proteção infantil, como a Innocence in Danger, veem o julgamento como uma chance de romper tabus sobre abuso sexual na França. O caso segue a condenação de Dominique Pelicot, em dezembro de 2024, por drogar e facilitar o estupro de sua ex-esposa, Gisèle. Ambos os processos destacam a necessidade de mudar a cultura de silêncio. Manifestantes em Vannes exibiram cartazes com frases como “Parem o código do silêncio”. A sociedade francesa é pressionada a encarar a questão. A luta por justiça ganha visibilidade.
A defesa de Le Scouarnec, liderada pelo advogado Maxime Tessier, admite a “grande maioria” das acusações, mas não todas. O ex-cirurgião enfrenta até 20 anos de prisão adicionais, além da pena que já cumpre. Ele descreveu seus atos como impulsos que o “invadiam e tiranizavam”, segundo registros judiciais. A promotoria usa os diários como prova central, mas o julgamento também analisa a responsabilidade de hospitais e autoridades. A complexidade do caso exige um veredicto equilibrado. O desfecho é aguardado com tensão.
Por fim, o julgamento de Joël Le Scouarnec não é apenas sobre punição, mas sobre reflexão e reforma. Com 299 vítimas identificadas — e possivelmente mais —, o caso é considerado o maior de “pedocriminalidade” da França. Ele expõe vulnerabilidades no sistema de saúde e na proteção infantil, exigindo mudanças estruturais. Para as vítimas, é uma chance de fechar um ciclo de sofrimento. Para o país, é um alerta sobre os custos da negligência. Em 2025, a França encara seu passado para construir um futuro mais seguro.